Este texto de Marina Colasanti foi publicado em seu livro de mesmo nome (Eu sei, mas não devia - Ed. Rocco - Rio de Janeiro - 1996). Com este livro Marina conquistou um prêmio Jabuti.
Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.
3 comentários:
... e ainda assim abrimos a boca e dizemos que somos livres, que só fazemos o que queremos e que nada nos impede de usufruirmos da liberdade democrática de nossas vidas.
Beijos!
¡¡¡Excelenteeee!!!, Josi,habrìa que difundir los pensamientos de quien fuera ministro de Agricultura de Uruguay, el Sr. Mujica, èl dijo que el hombre trabaja 10 hs para ganar papeles llamados "dinero", con ese dinero compra ropa, heladeras, cocinas,televisores, etc...su dinero vuelve a sus patrones, al final ese hombre no ha ganado nada, sino que ha perdido su tiempo, ha vendido su tiempo por papeles, ha perido su tiempo para amar a sus hijos, mirar el cielo, pescar un dìa en el rìo, hablar con su esposa,escribir un poema.
Asì se vive hoy, no se gana dinero...no...se vende nuestro tiempo de vivir..
Gracias Jossi...muchas gracias por tan excelente reflexiòn...maravillosa reflexiòn.
abrazo grande amiga.
Há quanto tempo...
Venho me afogando nessa rotina do dia a dia?
Venho sufocando em mim a ânsia de tentar uma nova vida?
Não tenho minhas próprias ideias, não vejo com meus próprios olhos, não sinto com meu próprio coração?
Não paro um pouco e reflito sobre minha própria vida?
Não tenho tempo para mim mesmo, não sinto meus próprios passos, minha respiração, meu próprio corpo?
Deixei de ouvir a mim mesmo?
Deixei de ouvir o canto dos pássaros, o som da brisa, o riso alegre das crianças?
Não choro mansamente, sorrio mansamente, sinto minhas emoções?
Deixei de amar as pessoas?
Deixei de amar a mim mesmo?
"Jamais dessesperes, mesmo perante as mais sombrias aflições de sua vida, pois das nuvens mais negras cai água límpida e fecunda."
( provérbio chinês)
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